Viajar devagar entre desertos e estrelas

Em Outubro e Novembro desse ano fiz uma viagem de bike entre a Bolívia, o Chile e a Argentina com minha namorada. Foram 1850 km entre La Paz na Bolivia e Salta na Argentina, 200 km de asfalto, o resto de terra, através paisagens desérticas do Altiplano, a maioria do tempo entre 4000 e 5000 m de altitude.



Já contei nessa postagem a primeira parte da viagem. Agora que voltei ao Brasil, queria contar um pouco sobre a segunda parte, entre Uyuni na Bolívia, San Pedro de Atacama no Chile e Salta na Argentina.
O trecho entre Uyuni e San Pedro, na região do Sul Lipez, é considerado como o trecho mais difícil pelos ciclistas que atravessam as Américas do Alasca até a Patagónia. São 500 km de pista em péssimo estado a mais de 4000m de altitude, com temperaturas de –20 graus a noite, muito poucos vilarejos para comprar comida e encher as garrafas de água, e um vento muito forte quase todos os dias do ano.



  
Mas no Sul Lipez, as paisagens são tão fantásticas que elas levam o ciclista para frente: teve dias que tomamos café da manha mergulhando numa fonte de água quente natural, seguimos durante 20 km as margens de uma laguna tão vermelha como sangue, passamos do lado de um gêiser a 4950m de altitude, e dormimos do lado de uma laguna verde turmalina... São paisagens que alimentam a alma, que deixam o ciclista tão profundamente feliz que ele esquece o resto do planeta e as dores no corpo.

Laguna hedionda, Sul Lipez:




A famosa Laguna Colorada no Sul Lipez, vermelha como sangue...




Conseguimos fazer a travessia do Sul Lipez em 10 dias, esses que vou lembrar minha vida inteira, cada dia, cada noite, cada momento de desespero, cada momento de grande felicidade.

A chave do sucesso desse tipo de empreitada é a preparação.
Primeira, a preparação logística. Ficamos dois dias em Uyuni antes da travessia, estudando minuciosamente os mapas, colocando na memória do GPS os pontos mais importantes, perguntando para o máximo de pessoas informações e dicas, para saber exatamente a quantidade certa de comida e água que precisava levar. Finalmente levamos 8 dias de comida e 2 dias de água. Tivemos a sorte de encontrar em Uyuni um motorista de 4x4 de uma agência de turismo que aceitou fazer um deposito de comida  no lugar onde a gente ia passar o sétimo dia.

Outra preparação muito importante é a preparação mental. Fisicamente a gente já estava bem, e mesmo assim o tipo de esforço que exige uma bicicleta é bem diferente do esforço da escalada. Numa parede negativa, quando os braços cansam, a cabeça pode ser forte o suficiente para eles fazerem 2, 3 movimentos a mais que o limite físico aparente. Mas mesmo com uma cabeça muito forte, eles vão acabar abrindo rápido. Ao contrario, numa viagem de vários meses, o ciclista quase nunca alcança o limite físico absoluto. O limite é na cabeça. Antes dessa viagem nós tínhamos lido alguns relatos de ciclistas que já tinham feito essa travessia e que contavam como tal dia, um parou, jogou a bike no chão e chutou nela de raiva, outro desistiu e esperou um 4x4 passar para acabar a travessia de carona.
Durante os dias mais duros, depois de horas lutando na areia a 6 ou 7 km/h, com um vento de frente a 60 km/h, a cabeça queria muito desistir, pensava muito forte que eu estava preparado para isso, que o crux era agora mesmo, um crux de várias horas seguidas, fazendo o máximo para considerar cada novo metro vencido como uma grande vitória.
E olhava para Coralie, que enfrentava o mesmo obstáculo que eu sem nunca reclamar, e pensava: estamos lutando contra o mesmo inimigo invisível, nosso desejo de desistir, ela não desistiu, não vou desistir também não, esse momento é totalmente absurdo, mas na realidade ele é muito mais lindo ainda que absurdo, porque estamos juntos.



 

Quando a areia era fofa demais, tinha que empurrar a bike... A pé, o deserto parece maior ainda.





Teve dois dias, que em 8 horas de esforço intenso, conseguimos percorrer 40 km só...

 
O maior aperto que passamos foi no quarto dia quando de repente escutamos um barulho que espantou a gente. No momento abaixei o corpo como se estivesse querendo escapar de um tiro, mas entendi rápido que não podia ser um tiro no meio do deserto: era um de nos dois que tinha furado o pneu. Olhei para minha bike, estava beleza, era a bike da Coralie que estava sem condição de ir mais para frente: o pneu da frente tinha estourado com a câmara!! Consertamos a câmara, mas 5 km depois ela furou de novo, pois o pneu estava com um buraco gigante e não protegia mais a câmara. Consertamos de novo a câmara, mas sabíamos que nessas pedras ela ia estourar de novo em poucos km, o dia estava escurecendo, o vento de frente aquele dia estava muito forte, a água estava acabando, nem Coralie nem eu falamos nada mais sabíamos que o momento era bastante crítico... 
 
Concertando o pneu:




Foi com muito alivio que, quando as primeiras estrelas estavam aparecendo no céu, vimos a alguns km na frente, perdida no meio de nada, uma casa!! E foi com mais alivio ainda que descobrimos que tinha luz na casa, ou seja gente morando la! Entramos na casa muito cansados, estávamos pedalando desde as 7 da manha e estava 7 da noite, muito sujos, sem tomar banho há 3 ou 4 dias, e descobrimos dentro da casa de aparência modesta um hotel 3 estrelas!!
Na hora de entrar nos sentimos iguais extra terrestres no meio de alguns turistas descansados, com roupas limpinhas, e ficamos alguns minutos sem saber o que fazer. O anfitrião chegou, era muito simpático, mas o preço do hotel era muito alto para nos... Felizmente ele entendeu bem nossa situação: ele arrumou para nos um cantinho no hotel e nem cobrou nada da gente!
Passamos a primeira parte da noite contando nossas aventuras para os turistas que por acaso eram franceses e belgas, e depois ficamos duas horas costurando e arrumando uma gambiarra para o pneu da Coralie aguentar os 300 km de pistas que faltavam até San Pedro de Atacama... E ele finalmente nunca mais furou!!

O pneu da bike da Coralie em San Pedro de Atacama:




Um dos melhores momentos do dia era no final da tarde, quando o sol começava a ficar laranja, o céu vermelho, quando o vento começava a diminuir, e que podíamos escolher com uma sensação de liberdade absoluta um lugar qualquer para colocar nossa barraca no meio do deserto.











Esse foi o lugar mais frio que acampamos a 4600m de altitude: o termómetro deu –12 graus de manha dentro da barraca!


 
Momentos deliciosos dentro da água a 35 graus quando fora o ar estava a menos 10...

  

No meio do deserto do Sul Lipez, acho que foi o boulder mais incrível que já escalei, "El Arbol de Piedra"!


 



A última maravilha do Sul Lipez, a Laguna Verde (ela tira a cor verde do arsénico que a água contem!), com o famoso vulcão Licancabur no fundo:



No cume do Licancabur, com a Laguna Verde atrás, durante uma outra viagem em 2002:



Na porta do refugio da Laguna Verde, tivemos a boa surpresa de descobrir o adesivo "Escalada sem fronteiras" que o Yan tinha deixado la em 2004!



Depois de alguns dias de descanso no deserto de Atacama em San Pedro, seguimos o caminho rumo à Argentina: passamos o Paso Sico, um col a 4600m de altitude, foram mais 10 dias de aventura total numa pista de melhor qualidade que no Sul Lipez, sem areia, e sem nenhum 4x4 também, no máximo passavam um ou dois caminhões por dia... Andávamos sozinhos em paisagens quase tão lindas como as do Sul Lipez, observando de vez em quando flamengos, condores, vicuñas e raposas.






 Fronteira Chile - Argentina:





Foi nessa travessia que encontramos um casal de viajantes bastante originais. A gente estava numa subida de 30 km que não queria acabar quando apareceram na nossa frente dois pedestres. Claire, a mulher, estava mancando, com uma mochila pequena, e Georges, o homem, estava com uma mochila gigante, puxando um carrinho que parecia muito pesado. No carrinho descobrimos uma reserva de 30 litros de água e um labrador de 40 kilos!! Começamos a conversar em espanhol, mas mudamos rápido para uma língua mais fácil para a gente: era também um casal de franceses! Eles tinham saído de Ushuaia há 9 meses! E planejavam de chegar sempre a pé no Caribe na Colômbia no final de 2011!!

A história deles é muito legal: eles têm 20 e poucos anos, na França ele era cozinheiro, ela garçonete, eles quase nunca tinham viajado, e um belo dia, ele perguntou para ela, de nada: “Vamos atravessar a pé os Andes?” Ela topou na hora. Os Andes para os Europeus são sinônimos de montanhas maravilhosas, muito mais selvagens que os Alpes, e cheias de lendas e segredos... (não é muito longe da verdade não é?!)
Durante um ano eles moraram num pequeno motorhome para não gastar dinheiro com aluguel e guardar quase tudo o dinheiro do salário para a viagem dos sonhos, e quando eles decidiram que tinham o dinheiro suficiente para viajar, compraram uma passagem para Buenos Aires, foram de carona até Ushuaia, e começaram a longa caminhada...
Eles estão percorrendo uma media de 25 km por dia, e ficam o dia inteiro conversando sobre os próximos projetos deles: atravessar os Alpes e depois o Himalaia, sempre a pé...
Infelizmente depois de alguns meses o cachorrão deles ficou com uma lesão na pata, mas no lugar de abandonar ele em algum canto da Cordilheira eles compraram um carrinho para levar ele!!! A menina também estava meio machucada, mas com o mesmo sorriso no rosto de gente profundamente feliz que o seu namorado... 
Em 9 meses eles pagaram 3 noites só um hotel!!!

Dune, Coralie, Claire e Georges:

 


Depois de trocar ideias com eles, quase nunca mais pagamos hotel! Quando chegamos à Argentina mais perto da grande cidade de Salta e que começou a aparecer alguns vilarejos, os dias que não acampávamos, ao lugar de procurar um hotel íamos pedir um lugar para dormir nas escolas, nos postos de policia, ou batíamos na porta de alguma casa de morador na cara de pau e quase sempre fomos muito bem recebidos! Sempre ficávamos durante horas a noite conversando e comendo com os professores, os policiais, trocando historias, dicas de cozinha, sem pagar nada, era muito melhor que qualquer hotel!

Dormimos também em casas abandonadas para nos proteger do vento!
 
 Home sweet home:



Reparem a lona para tampar o vento!



No final da viagem (para mim só, a Coralie está indo até Ushuaia), encontramos em Salta um casal de franceses em lua de mel, dando a volta ao mundo em um ano com uma bike tandem!
O cara era ex-campeão de esqui, a menina não era muito esportista: a bike tandem é a melhor solução quando existe uma diferença muito grande de condição física entre os dois parceiros.

Experimentamos a bike, é claro!





Esse tipo de viagem de vários meses, com o tempo suficiente para descobrir com calma paisagens fantásticas e culturas diferentes é uma das melhores experiências que a vida pode nos oferecer. 
E para quem acha que esse tipo de viagem é reservado a herdeiros ou para quem ganhou na mega-sena, saibam que gastei mais ou menos R$ 2000 por dois meses e meio de viagem, passagens de avião (na ida) e ônibus (na volta) incluídas!

Antes de despedirnos, Georges falou essas palavras interessantes:
"Nessa hora deve ter milhões de pessoas presas no trânsito nas grandes cidades do mundo, indo para um trabalho que elas nem gostam, e a gente está aqui, vivendo todo dia nosso sonho, e imaginando o dia inteiro os próximos..."


Quem estiver interessado em fazer essa maravilhosa viagem de bike, de 4x4, ou melhor, a pé!!, pode entrar em contato comigo para conseguir informações práticas. (rokaz@rokaz.com.br)

Alexis

6 comentários:

  1. Muito bom alexis! Dá vontade de começar os planos agora mesmo!

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  2. Uau!!! Que viagem incrível! Muito lindo!
    Que muitas aventuras e viagens lindas continuem acontecendo no ano de 2011.

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  3. Parabéns por esta aventura. Fotos belíssimas.
    Postei no blog www.pedaldofrango.blogspot.com
    com a fonte.
    Um abraço.

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  4. Na primeira foto do boulder a sombra da pedra é o mapa do Brasil. Incrível a aventura, parabéns.

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  5. Alexis e Coralie parabéns pela empreitada e que em 2011 possamos compartilhar muitos mais momentos mágicos como os que voces passaram nessa aventura de tirar o fôlego até de quem lê! Lindas as paisagens e excelente ideias surgem quando voce tira as teias de aranha dos pulmões, quando o sangue corre mais forte nas veias e o homem completo se revela: Conectado com a Natureza como deveria ser! Abração!

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  6. Alexis e Coralie parabéns pela aventura!
    Adorei os relatos, fotos, tudo! Encantador!

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